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Hoje, mais uma vez, acordei com um estalo verde no canto da tela. A notificação do aplicativo trouxe uma mensagem escrita com a minha voz, assinada com o meu nome, colada no meu retrato — mas não era eu. Era o eco de mim, manufaturado por mãos que não seguram livros nem processos, apenas moldam máscaras. Do outro lado, havia alguém à espera de um alvará, de um depósito, de um gesto do Estado que demorou a chegar e, na demora, abriu espaço para o atalho do crime.
O golpe não derruba apenas contas bancárias: derruba o chão por baixo dos pés. Há sempre uma história antes do estelionato — uma ação trabalhista que amadureceu como fruta pendurada, um benefício atrasado, um acordo milimetricamente aguardado. Quando toca o celular, a esperança se adianta à cautela; a voz que se apresenta parece conhecer tudo: o número do processo, o nome do juiz, a data da audiência, a expressão exata que usamos no último atendimento. Como não acreditar? O crime aprendeu a falar conosco pelos corredores eletrônicos do Judiciário.
Conceição acorda cedo, e, com ela, o país inteiro. Na fila do pão, alguém comenta que o filho mandou dinheiro para “liberar o alvará”. A professora que dá dois turnos de aula entrega o que juntou por meses porque a mensagem veio “assinada pelo advogado”. O pedreiro, que riscou de memória a planta da própria casa, mostra o depósito feito “para agilizar o repasse”. O fio é sempre o mesmo: confiança. O corte, também.
Escrevo esta carta não para repetir a cantilena do medo, mas para lembrar que há dor acumulada onde deveria haver providência. A cada perfil falso, uma biografia rachada. A cada pedido de depósito “para liberar o que já é seu”, um país que desaprende a confiar nas instituições, porque o silêncio burocrático é o melhor cúmplice do barulho do golpe.
Onde estão, então, os olhos que deveriam vigiar a rua digital? Onde se esconderam os passos firmes da investigação? O boletim de ocorrência, que deveria ser o primeiro degrau, muitas vezes vira piso encerado: brilhante, escorregadio, inútil. Faltam escutas atentas, faltam delegacias que falem a língua dos algoritmos, faltam promotores com tempo e equipe para acompanhar o dinheiro que troca de mão na área cinzenta entre plataformas, bancos e chips descartáveis. Falta, sobretudo, a decisão de dizer: “Nós vamos até o fim”.
A tecnologia que esvazia carteiras também deixa rastros: IPs, geolocalizações, cadastros de chips, fluxos de transações, triangulações em tempo real. Não é magia — é método. Investigar hoje é desenhar mapas invisíveis. Punir com justiça é transformar esse desenho em prova. O que nos fere não é apenas o engenho do criminoso, mas a timidez do Estado diante do espelho. Quando as instituições demoram, os rostos falsos ganham coragem; quando as respostas são protocolares, os impostores aprendem que a noite é longa e as luzes, poucas.
Há, sim, bons servidores nadando contra a corrente, delegados que não descansam, promotores que não se conformam, juízes que cobram mais do que relatórios protocolados. Mas a crônica não é sobre exceções heroicas: é sobre o cotidiano que repete a mesma cena de portas semiabertas e a frase “estamos apurando” como trilha sonora de uma espera sem fim. Se o crime já opera com times profissionais, nós não podemos enfrentá-lo com soluços voluntariosos. É preciso política pública, não apenas boa vontade. É preciso fluxo integrado, não apenas mutirões sazonais. É preciso orçamento, capacitação, parcerias firmes com plataformas, bancos e operadoras, com metas, prazos e transparência. É preciso, enfim, que a lei saia do papel como quem sai para a rua com endereço certo.
Foto Reprodução/Ilustrativa
Falo de nomes roubados porque o primeiro bem violado é a identidade. Quando alguém usa sua foto para pedir dinheiro, não furta apenas moedas: furta a palavra que você levou anos para assinar. Há um dano moral que não se contabiliza e um dano cívico que se espalha: clientes passam a desconfiar de quem os defende, e a Justiça, que já anda devagar, passa a caminhar sob suspeita. Não se constrói República sobre um terreno esfarelado. O artigo que assegura honra e imagem não pode ser lembrado apenas em cerimônias; precisa ser vivido em delegacias equipadas, em promotorias que sigam o rastro do crime, em decisões judiciais que cortem o fluxo financeiro da fraude antes que vire costume.

Foto Reprodução/Ilustrativa da Getty Images
Não quero, com esta carta, apontar dedos como quem risca um fósforo na cisterna. Quero acender uma lâmpada numa rua escura. Porque sei que a escuridão favorece a indústria da mentira: perfis falsos florescem no breu onde não há fiscalização, e mensagens fraudulentas brotam no terreno baldio da demora. A boa notícia é que o terreno pode ser cuidado. A má notícia é que jardinar dá trabalho — exige rotina, não espetáculo.
Talvez o que nos falte, além de tecnologia, seja poesia institucional: capacidade de imaginar o outro. Antes de arquivar um pedido de ajuda, que tal ouvir o timbre cansado de quem perdeu o pouco que tinha? Antes de responder com o texto padrão, que tal lembrar que ali há uma mãe, um aposentado, um estudante, um trabalhador que viu o mês furar o envelope? O Estado que ouve é mais eficiente que o Estado que apenas fala. O Estado que devolve o dinheiro rastreado no dia seguinte é mais pedagógico do que mil campanhas frias de “não clique”.
E a nós, da advocacia, cabe também uma autocrítica amorosa e firme. Precisamos educar os nossos, padronizar canais oficiais, publicar orientações claras, avisar que não pedimos depósitos para “liberar” o que já é devido, usar verificação em dois fatores, proteger dados como quem protege filhos. Cabe à Ordem estender a mão não só quando a ofensa chega ao salão principal, mas quando ela começa lá fora, no terreno onde o crime ensaia, nos grupos e listas que alimentam os impostores. Campanhas são boas; protocolos são melhores; parcerias com autoridades, imprescindíveis.
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| Foto Reprodução/Ilustrativa |
Sei que o mundo não muda com uma carta. Mas cartas acumuladas formam um arquivo de consciência, e consciências acumuladas movem agendas. Por isso, peço: que a Polícia Civil assuma o caso como prioridade cotidiana, que o Ministério Público conduza com lupa e pressa responsável, que os Tribunais exijam cooperação ágil de quem lucra com as plataformas por onde o crime passeia, que a OAB nos ponha sob um guarda-chuva de proteção concreta e mensurável. E que nós, cidadãos, sejamos menos sozinhos: desconfiemos com gentileza, confirmemos por canais oficiais, não entreguemos senha, código, precaução.
No fim do dia, o que pedimos não é vingança, é justiça operante. Queremos investigação que encontre pessoas por trás dos perfis, processos que não se arrastem como sombras, punição que ensine mais do que assuste, reparação que chegue antes que a vida desande. Queremos voltar a usar nossos nomes sem parênteses, nossos rostos sem aspas, nossas vozes sem eco.
Escrevo esta crônica como quem deixa um bilhete na porta: “Toque a campainha da responsabilidade, não a do protocolo”. Enquanto não vierem, seguiremos batendo panelas de palavras, chamando pelos nomes, lembrando que o silêncio também é uma escolha — e, às vezes, a pior delas.
Assina esta carta quem ainda acredita que a Justiça pode ser o lugar de onde a verdade fala sem precisar gritar — e onde o crime aprende, enfim, que a noite tem hora para acabar.
Por João Vinícius Soares de Figueirêdo / Foto Reprodução/ilustrativa








